Há fatos da
infância que a gente não esquece jamais. Assim como há épocas, tradições e
acontecimentos que sempre nos trará aquela nostalgia boa. Como ouvir uma velha
música, trilha sonora de um tempo bom.
Quando menino, por essa época dos
caretas, não tinha quem me fizesse sair na estrada. Tinha um medo medonho dos
temíveis e brutais caretas, capazes de fazer coisas terríveis e horrendas com
as criancinhas que ousasse a sair de casa na Sexta-feira da Paixão. Elas seriam
julgadas sem direito a apelação: açoite! Chibatada no lombo.
A semana santa,
naquela época, era um tempo que misturava prazeres e coisas que não agradava muito,
se é que vocês me entendem. Um dos fatos que me cativava um pouco era a “Quarta-feira
de Trevas”, único dia do ano em que minha mãezinha querida não se esgoelaria me
mandando tomar banho antes que o negro da noite tomasse conta de tudo. Claro, o
sucesso só vinha após as ameaças feitas ao tremulinar o chicote nas mãos.
Apesar disso, me
trazia agoniação pensar que com qualquer descuido que desse com qualquer
gotícula d’água, durante aquelas vinte e quatro horas, que viesse a tocar o meu
corpo e, principalmente as minhas pernas, eu estaria fadado a ficar petrificado
para o resto dos meus dias. Meu maior medo era que a cólera atingisse as
pernas. Não poder andar seria o pior dos castigos para um moleque que vivia no
sítio em meio a tudo de bom que estava ali se oferecendo para ser explorado,
desmistificado. Quer dizer, seria o segundo pior, só perdia para os açoites dos
Caretas. Nada era pior do que aquilo.
Por essas e
outras que na quarta e na sexta da Semana Santa, sempre jejuava de alguma
coisa. Ou não tomava banho, ou não saia de casa, respectivamente.
O banho era
fácil resolver, não havia contraposição por parte de ninguém, afinal, todos
queriam respeitar os costumes, mas em se tratando de sair de casa, aí não havia
jeito. Acontece que justamente aquele dia era o dia de dar a bênção às
madrinhas. Justo naquele dia. Queria saber quem foi o engraçadinho que inventou
esta tradição. Será que não poderia ser no sábado? Ou mesmo no domingo, um dia
tão belo em que Jesus ressuscitou?
Antes que eu me
esqueça, o “dar a bênção às madrinhas e padrinhos” era um outro detalhe que
muito me contentava. Não que eu fosse interesseiro, isso nunca, mas morria de
ansiedade pra saber o que ganharia naquele ano. Ano passado ganhei uma camisa;
no outro, um short; no retrasado, um perfume talvez, sei lá, nem lembro mais,
faz muito tempo. Valia a pena correr todo o risco de se abalroar com aquela
gangue do mal para ir até aos meus padrinhos levando uma lembrancinha singela a
eles e, claro, trazer de volta a minha, junto com a bênção que me davam. Acho
que nem lembro mais das palavras que dizia quando, encontrando-os, ao prostrar-me
diante deles, eu dizia:
-
Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo, seguido do pedido de bênção.
Aos cangaceiros
encaretados, nunca vi coisa mais feia. Um bando de “cabra” e suas faces encobertas
com uma careta feita de papelão, perfurado em quatro lugares, olhos, nariz e
boca, com chifres e toda suja de carvão. Vestidos feito bichos com sacos e trapos
velhos. Na cintura levavam um chocalho que anunciava o terror e nas mãos os
seus chicotes dolorosos e sangrentos. Aquela imagem e aquele som me doíam à
espinha!
Só tinha uma
coisa que me deixava encucado. Eu não conseguia entender, como animais brutos e
desprovidos de compaixão como eles, poderiam ter uma voz tão estranha. Não me
entrava na cabeça que aqueles que tanto medo me dava só de ouvir dizer, quando
abriam a boca falavam fino. Isso mesmo, fino e baixo como uma donzela tímida.
Não era possível. Ouvia-se sempre o mesmo pedido:
-
Me dê uma esmolinha pro Juda! Isso, claro, fino e baixo, como uma cigarra sem
voz.
Infelizmente, talvez
esse detalhe em que me peguei a pensar tenha sido quem me tirou a inocência do
medo. Infelizmente mais tarde descobri que aqueles eram só os vizinhos e amigos
da redondeza brincando de tradição. Que aquele tal Judas para quem eles pediam
com suas vozes irreconhecíveis, era um boneco que estaria, no domingo, pendurado
no centro de uma roda em volto a tudo que lhe foi dado, o que, pouco a pouco,
seria levado, ou “roubado”, pelos participantes da brincadeira, que entraria na
roda e levaria o que quisesse ou pudesse pegar, sob chicotadas de todos os
tamanhos e forças. Sob pena do açoite. Nisto eu estava totalmente certo, o
açoite existia sim, mas era parte da festa e, graças a Deus, as crianças
estavam fora dela. Por último restaria o Judas, o prêmio maior. Quem se
atreveria a roubá-lo?
Bom seria poder ver meu filho vivenciar
tudo isso também!
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